Dicas do Hessel #066: O que aconteceu com a surpresa
agosto 18, 2021
Embora faça semanalmente esta seleção de dicas, no fundo eu me sinto incapaz de sugerir filmes para caber na expectativa das pessoas, porque afinal cada um tem as suas - e também porque eu nunca leio sinopses antes de escolher o que assistir. Acho que a surpresa é um componente importante que se perde quando tantos filmes são feitos para atender uma expectativa pronta, e a familiaridade não é, pelo menos para mim, o que mais me atrai num prospecto de novas experiências.
É interessante, então, que os streamings tenham criado esse botão de escolha aleatória para seus assinantes. Obviamente o algoritmo vai fazer seu trabalho de indicar coisas familiares (pelo menos essa é a função dele) mas ocasionalmente o shuffle pode render alguma surpresa boa? É nesse espírito que as Dicas do Hessel nesta semana sugerem sete filmes que podem surpreender quem não foi além de analisar o resumo ou a cara do pôster na hora de escolher o que assistir. Liga o randômico aí e boas descobertas!
A Professora do Jardim de Infância
Este drama de 2018 é o caso típico do pôster enganoso, com Maggie Gyllenhaal posando ao lado de uma criança no cartaz, no papel da tal professora do título. Qualquer insinuação de discurso motivacional ou história água com açúcar rapidamente se desfaz neste remake do longa israelense de 2014 de Nadav Lapid. O que a diretora Sara Colangelo entrega é uma história sufocante de frustrações da vida, com uma direção muito segura que adota o formato mais horizontal do Scope para isolar Gyllenhaal no enquadramento e testar a capacidade da atriz de sustentar sozinha o seu arco de penúria. Poucas vezes a atriz foi tão desafiada, num papel que não lhe permite fuga e a pega no meio termo entre o fim da juventude e o início da vida aos 40. É um prazer assistir a uma atriz talentosa demais sendo sondada nos seus limites, por uma direção que sabe o que fazer com a câmera.
Falando em surpresa, isso não falta aqui; na falta de uma grávida este filme chinês tem duas, e tem também gangue de Aracaju, mais pombas do que John Woo conseguiria contar, e uma explosão de geladeira que antecipa em oito anos o suposto exagero de Indiana Jones 4. Porque tem gente que faz filme de ação como se estivesse lixando porta e tem gente como o diretor Tsui Hark, que faz filme de ação como se a família dependesse disso. Em O Tempo e a Maré, a preparação (e a exposição que a acompanha, sempre muito ligeira em Tsui, por mais intrincada que seja) só serve para justificar uma entrega de ação. Toda a segunda hora opera em moto-perpétuo, num desfile de soluções de câmera que faz da imprevisibilidade a própria razão de ser do filme.
Lançado em 2010 no meio da febre do 3D, este terror de matinê dirigido por Joe Dante adapta a fórmula da casa mal-assombrada a uma situação que tenta tirar vantagem da profundidade do efeito tridimencional. Na trama, dois irmãos se mudam para uma nova casa e descobrem um alçapão no porão que leva a um buraco sem fundo, o que motiva uma série de sacadinhas com a nova tecnologia. Vale revisitar O Buraco não apenas para relembrar essa época, que hoje parece remota, mas acima de tudo para celebrar o cinema de Dante, cujos terrores teen serviram nos anos 1980 e 1990 para ditar todo um formato ao gênero (que hoje a Netflix explora em seus filmes de horror de veia irônica e nostálgica). No mais, nunca vai ficar velho o jeito como ele entende o cinema, como um mistério cuja graça é tentar desvendar e se apropriar, como nos truques de ilusionismo.
Eu já sabia que este filme de Steven Soderbergh estrelado por Meryl Streep poderia ser bom, pelas críticas que recebeu nos EUA em 2020, mas ainda assim foi uma gratíssima surpresa, e acho o melhor filme do diretor desde Unsane. No começo, a premissa dos desencontros em um cruzeiro (onde uma agente literária coloca uma escritora famosa porque quer descobrir como será o livro novo dela) tem cara de comédia de Woody Allen, e no fim o espectador se pega atropelado pela crueza das relações de afeto mal resolvidas, que se encaixam muito bem numa busca de Soderbergh pelo essencial na encenação. É um filme bastante marcante, e não é sempre que o diretor encontra um material que se encaixa tão bem assim em suas pretensões narrativas.
Uma coisa que se aprende vendo filmes de Hong Kong é que a numeração nos títulos não significa necessariamente uma continuação; e mesmo uma comédia romântica como esta, que se preocupa com flashbacks para reapresentar personagens e situações, pode ser plenamente aproveitada sem conhecer o filme anterior. Ainda assim, o trabalho do diretor Johnnie To para inventar novas formas de envolver o espectador em diferentes pontos de vista (na trama de dois noivados que são abalados por relacionamentos passados e cruzados) tem altas doses de imprevisibilidade. Deixar-se levar pela cadência da câmera de To, como na excelente cena dos prédios espelhados que convidam a espiar e acompanhar a vida dos outros, é um prazer para quem gosta de comédias de desencontros.
Se o histórico relativamente recente do terror francês servisse de referência, A Nuvem poderia se apresentar como um novo Mártires (2008) ou um novo A Invasora (2007), filmes com uma predileção pela paranoia social e pelo sadismo para dar conta do horror de ser mulher ou mãe num mundo masculino cada vez mais brutalizado. Mas na prática essa história sobre uma mãe solteira que investe tudo num negócio próprio para criar seus filhos no interior da França está menos para o horror corporal do que para o horror de startup. No caso, “cortar na carne”, esse grande lema do capitalismo tardio, é levado ao pé da letra neste terror que bate pesado em tempos de home office e que ensina que morar dentro do trabalho talvez não seja tão saudável assim.
No papel, esse filme britânico de 2018 parece só mais uma tentativa de replicar o sucesso de Billy Elliot. A estrutura é mais do que similar - garota de classe baixa sonha em se realizar na arte para deixar as frustrações de uma vida proletária sem perspectiva de ascensão social - e a presença de Julie Walters no elenco certamente alimenta a comparação. Mas dar uma chance para o longa pode ser uma boa surpresa, porque há certas coisas que só se vê na hora, como por exemplo a energia e o compromisso que a protagonista Jessie Buckley coloca no seu papel, para nos convencer de que a protagonista Rose nasceu mesmo no meio de Glasgow como uma estrela deslocada do country de Nashville. Esse contraste cultural ajuda a fazer do filme uma sessão inesperadamente original.
Escritora, autora da duologia "A Princesa e o Viking" disponível na Amazon. Advogada e designer de moda. Desde 2008 é blogueira. A longa trajetória já teve diversas fases, iniciando como Fritando Ovo e desde 2018 rebatizado como Leoa Ruiva, agora o blog atinge maturidade profissional, com conteúdo inovador e diferenciado. Bem vindos!
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