(Não) Escrever em tempos de Covid

abril 27, 2021

          *Por Jorge Alexandre Moreira

Por pouco, não escrevo essas palavras. Não tenho tido vontade de escrever e tive menos vontade ainda de escrever sobre escrever; falar sobre o que você deveria estar fazendo, mas não faz.

Ainda assim, tentei. Digitei ideias, fragmentos de parágrafos. Tudo me pareceu tolo, prepotente ou hipócrita. Quem eu estava tentando enganar? Falando sobre escrever quando não estava escrevendo? Melhor esperar até que tivesse algo para mostrar.

Procurei outros temas, mas não fui longe. Dei-me conta de que estava fugindo exatamente daquilo que precisava falar. Do meu conto que anda menos de uma página por semana. Do meu romance que ainda é só uma ideia. Dos meus compromissos assumidos toda noite e quebrados toda manhã.

Crime capital, nesses tempos de retoques e filtros e corretores, colocar luz sobre a própria incompetência. Principalmente, uma incompetência relativa a algo que te define.

Escritores escrevem. Escritores só são escritores se escrevem. Essa é a questão que pesa como uma espada sobre nossas cabeças.

Então, vamos lá. Se você chegou até aqui, falemos sobre o que tem dado certo, o que tem dado errado e sobre o que dá certo, mas não tenho conseguido fazer.

# Escreva o que puder, esse é o ponto mais importante. Meu conto está parado e meu romance ainda está no éter, mas textos como esse têm me mantido no jogo. Gostaria de estar mergulhado até o talo em meus ambiciosos projetos, mas não estou e é o que tem para hoje. Escrevo o que posso, com a condição de que seja verdade e que esteja queimando em meu peito. Escrever é como um músculo que se treina. Expressar sua verdade, também. Faça o que possa e seja honesto.

# Se lhe vierem inspirações, fragmentos de histórias, diálogos, anote. Meu conto "Águas Mortas", que minha editora Adriana Chaves disse que é uma das melhores coisas que já escrevi, ficou parado um ano e sobreviveu à base desses registros esporádicos. Não confie na cabeça. Seus maravilhosos pensamentos desaparecerão como fumaça.

Quero concluir com algo que sei que dá certo, mas que não tenho tido força para implantar: só mergulhe nas notícias e nas redes sociais depois de já ter escrito. Dá certo e sei disso não porque me disseram. Eu já apliquei e o resultado foi meu primeiro romance. "Escuridão" foi escrito em 2000, quando também peguei o hábito de ler jornais pela internet. Ao longo daquele ano, o livro avançava e eu gostava do resultado, mas o ritmo era de tartaruga. Às vezes, passavam dias sem que eu produzisse uma linha.  

Certa manhã, identifiquei o problema. Sentei diante do computador motivado, mas, depois de meia hora das desgraças do dia, meu foco havia sumido. Minha história não parecia mais tão importante, diante daquele assassinato bárbaro, daquela questão no Oriente Médio ou da potencial aprovação daquela lei absurda. Passei a só ler as notícias depois de escrever minha cota do dia e "Escuridão" ficou pronto naquele ano. Critique a disciplina o quanto quiser, mas na dose certa, ela faz milagres. 

Atualize-se menos e delimite horários. É difícil acreditar que seus personagens têm importância quando o mundo está desmoronando. E, cara, não sei há quanto tempo você está por aqui, mas acredite: o mundo está sempre desmoronando.

Por ora, é isso. Os personagens de meu conto continuam lá, congelados na última cena, mas, ainda assim, aqui estamos eu e você, trocando pensamentos em forma de palavras. Escrita está sendo produzida, algo está acontecendo. Se eu conseguir fechar a porta para a pandemia, nosso mundo em chamas e nosso país em ruínas, meu conto e meu romance ficarão prontos. Você será o primeiro a saber.

 

Sobre o autor

Jorge Alexandre Moreira lançou seu primeiro livro em 2003, quando quase ninguém falava em literatura de terror independente no Brasil. Escuridão, um romance ambientado na Amazônia, tem um conflito entre Brasil e EUA como pano de fundo e foi considerado por diversos sites como um dos melhores livros de terror já publicados no Brasil. Uma temática atual e, ao mesmo tempo, atemporal.

Leitor voraz desde os primórdios da infância, é devoto de Stephen King, Clive Barker, Rubem Fonseca e Jorge Amado. Em 2018, lançou Parada Rápida, um thriller sobre o desaparecimento de uma mulher em um posto de gasolina, durante uma viagem. Parada Rápida tem mais de 2000 downloads na Amazon e nota 4,5 na avaliação dos leitores.

Participou do Ghost Story Challenge e das antologias Confinados e Numa Floresta Sombria e, este ano, lançou Numezu, que já está sendo consagrado pela crítica e pelos leitores do gênero. Jorge vive e escreve no Rio de Janeiro, com sua esposa Luana e seu cachorro louco, Galeto.

Mais informações:

https://www.jorgealexandremoreira.com.br/ | jamoreiraescritor@gmail.com

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